sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O NATAL DOS TENHARIM


Os Tenharim, que se autodenominam Kagwahiva, falantes de uma língua pertencente ao tronco Tupi-Guarani, habitam a região do curso médio do rio Madeira, no sul do Estado do Amazonas. Sua organização social se estrutura pela divisão de metades matrimoniais, que recebem a denominação de aves. Sua cultura, altamente desenvolvida, caracteriza-se pela plantação de frutas, coleta de produtos silvestres, produção de farinha, artesanato, caça, pesca e criação de gado incipiente; produtos que são destinados ao comércio e escoados, para os municípios do Estado do Amazonas.  O termo pelo qual de autodenominam significa “nós”, “a gente”, o que denota a mútua solidariedade dos indivíduos, nascida, sem dúvida, do sentimento de pertencimento a um grupo no qual reconhecem a perenidade e a solidez de uma ordem moral originária, cuja voz cala fundo no peito de cada um e de todos.   Mutum-Nanguera  e Kwandu-Tarave (ou Gavião-Maracanã) são as denominações das metades matrimoniais pelas quais se organizam as famílias e se estabelecem as relações sociais entre eles, Trata-se de uma forma de ordenar as relações de parentesco que talvez se mostre estranha aos “brancos”, mas que constitui uma modalidade de organização política crucial para o desenvolvimento das civilizações. Suas alianças milenares se renovam anualmente, no período de julho a agosto, quando se realizam as festividades conhecidas como Mboatava. À semelhança do Natal cristão, essa festa enaltece a relevância da família e reitera a generosidade e a solidariedade como cimentos inquebrantáveis de sua pátria.
Dos 710 indivíduos registrados em 2010, pela FUNASA, cerca de quinhentos habitam a aldeia do rio Marmelos, localizada próxima a BR 230, conhecida como Rodovia Transamazônica. Desde os anos 1950, sua aldeia foi transferida para a localidade onde hoje está situada, próximo dos municípios de Humaitá e Apuí. Apesar de sua índole pacífica, esse grupo não tem tido vida fácil, pois há mais de trinta anos, encontram-se sob a pressão de madeireiros, de plantadores de soja, fazendeiros, garimpeiros e numerosos grupos sociais que, subindo desde a região Sul do Brasil, almejam a conquista das terras situadas na região do Madeira-Tapajós. A Terra Indígena Tenharim obteve do Governo Federal a homologação de sua situação jurídica.
Sob o pretexto de pressionar o governo a resgatar três pessoas supostamente sequestradas pelo indígenas, uma multidão rebelou-se, no município de Humaitá, provocou o incêndio de instalações da FUNAI e danificou bens públicos e privados destinados ao atendimento previdenciário e da saúde dos índios. Hoje, tivemos a notícia de que uma carreata dirigiu-se a àldeia, situada no município de Manicoré, onde atearam fogo nos imóveis construídos. Um grupo de cerca de 140 índios encontra-se refugiado no quartel do Exército Brasileiro, em Humaitá, onde contam que mulheres e crianças embrenharam-se na floresta, aterrorizadas com as ações de fazendeiros e madeireiros que, apoiados por seus empregados, usavam machados, armas de fogo e automóveis para invadir a aldeia.
Com todo esse horror lançado sobre esse povo, parece inacreditável que o noticiário tenha dado destaque e reiterado a informação a propósito do “sequestro” de três não índios. Destacaram, também, que os bens danificados não pertencem ao governo e enfatizaram, como se fosse um absurdo, a prática do “pedágio” pelos indígenas que reivindicam o pagamento de uma contrapartida do Estado Brasileiro pelo uso de suas terras para a construção da Transamazônica.
Pouco foi dito para que o público tome conhecimento da importância dos Tenharim, dos Parintintin, seus parentes e de todos os povos indígenas para o desenvolvimento sociocultural do Brasil. Não vi nem escutei nenhum dos grandes comentaristas, que aparecem no horário nobre da televisão brasileira, como grandes pensadores, uma palavra de indignação, mesmo diante do evidente atentado contra a humanidade, que esses pseudo-cidadãos, “brancos” estão cometendo. Alguém já disse que mais grave do que as ações dos maus é o silêncio dos bons.
Vejo tanta gente preocupada com os indicadores negativos da economia brasileira, indignados com os “mensaleiros” e até com os desvios dos organizadores da Copa do Mundo. Nada disso apagou o espírito de Natal. Por outro lado, o atropelamento de um ente querido, levando-se em conta, sobretudo, a baixa densidade de sua população, não poderia ser menosprezada por um grupo que vive sob o terror e ameaça contra suas vidas, seu status social e vê como iminente o desaparecimento de seu grupo social e de seu modo de viver. Mas esse evento não mereceu destaque nas manchetes dos jornais. O Natal dos Tenharim e sua experiência de comemoração do Ano Novo Cristão será marcada, doravante, pela festa macabra dos representantes da Ku Klux Kan no Brasil e por nossa indiferença face às manifestações de racismo que invadem este espaço virtual, onde a intolerância está ganhando terreno, em associação com a barbárie e a falta de educação.

Nenhum comentário: