Os Tenharim,
que se autodenominam Kagwahiva, falantes de uma língua pertencente ao tronco
Tupi-Guarani, habitam a região do curso médio do rio Madeira, no sul do Estado
do Amazonas. Sua organização social se estrutura pela divisão de metades
matrimoniais, que recebem a denominação de aves. Sua cultura, altamente desenvolvida,
caracteriza-se pela plantação de frutas, coleta de produtos silvestres, produção
de farinha, artesanato, caça, pesca e criação de gado incipiente; produtos que
são destinados ao comércio e escoados, para os municípios do Estado do
Amazonas. O termo pelo qual de autodenominam
significa “nós”, “a gente”, o que denota a mútua solidariedade dos indivíduos,
nascida, sem dúvida, do sentimento de pertencimento a um grupo no qual
reconhecem a perenidade e a solidez de uma ordem moral originária, cuja voz cala
fundo no peito de cada um e de todos. Mutum-Nanguera e Kwandu-Tarave (ou Gavião-Maracanã) são as
denominações das metades matrimoniais pelas quais se organizam as famílias e se
estabelecem as relações sociais entre eles, Trata-se de uma forma de ordenar as
relações de parentesco que talvez se mostre estranha aos “brancos”, mas que
constitui uma modalidade de organização política crucial para o desenvolvimento
das civilizações. Suas alianças milenares se renovam anualmente, no período de
julho a agosto, quando se realizam as festividades conhecidas como Mboatava. À
semelhança do Natal cristão, essa festa enaltece a relevância da
família e reitera a generosidade e a solidariedade como cimentos
inquebrantáveis de sua pátria.
Dos 710
indivíduos registrados em 2010, pela FUNASA, cerca de quinhentos habitam a
aldeia do rio Marmelos, localizada próxima a BR 230, conhecida como Rodovia
Transamazônica. Desde os anos 1950, sua aldeia foi transferida para a
localidade onde hoje está situada, próximo dos municípios de Humaitá e Apuí.
Apesar de sua índole pacífica, esse grupo não tem tido vida fácil, pois há mais
de trinta anos, encontram-se sob a pressão de madeireiros, de plantadores de
soja, fazendeiros, garimpeiros e numerosos grupos sociais que, subindo desde a
região Sul do Brasil, almejam a conquista das terras situadas na região do
Madeira-Tapajós. A Terra Indígena Tenharim obteve do Governo Federal a
homologação de sua situação jurídica.
Sob o pretexto
de pressionar o governo a resgatar três pessoas supostamente sequestradas pelo
indígenas, uma multidão rebelou-se, no município de Humaitá, provocou o
incêndio de instalações da FUNAI e danificou bens públicos e privados
destinados ao atendimento previdenciário e da saúde dos índios. Hoje, tivemos a
notícia de que uma carreata dirigiu-se a àldeia, situada no município de
Manicoré, onde atearam fogo nos imóveis construídos. Um grupo de cerca de 140
índios encontra-se refugiado no quartel do Exército Brasileiro, em Humaitá,
onde contam que mulheres e crianças embrenharam-se na floresta, aterrorizadas
com as ações de fazendeiros e madeireiros que, apoiados por seus empregados,
usavam machados, armas de fogo e automóveis para invadir a aldeia.
Com todo esse
horror lançado sobre esse povo, parece inacreditável que o noticiário tenha
dado destaque e reiterado a informação a propósito do “sequestro” de três não
índios. Destacaram, também, que os bens danificados não pertencem ao governo e
enfatizaram, como se fosse um absurdo, a prática do “pedágio” pelos indígenas
que reivindicam o pagamento de uma contrapartida do Estado Brasileiro pelo uso
de suas terras para a construção da Transamazônica.
Pouco foi dito
para que o público tome conhecimento da importância dos Tenharim, dos
Parintintin, seus parentes e de todos os povos indígenas para o desenvolvimento
sociocultural do Brasil. Não vi nem escutei nenhum dos grandes comentaristas,
que aparecem no horário nobre da televisão brasileira, como grandes pensadores,
uma palavra de indignação, mesmo diante do evidente atentado contra a humanidade,
que esses pseudo-cidadãos, “brancos” estão cometendo. Alguém já disse que mais
grave do que as ações dos maus é o silêncio dos bons.
Vejo tanta
gente preocupada com os indicadores negativos da economia brasileira, indignados
com os “mensaleiros” e até com os desvios dos organizadores da Copa do Mundo.
Nada disso apagou o espírito de Natal. Por outro lado, o atropelamento de um
ente querido, levando-se em conta, sobretudo, a baixa densidade de sua população,
não poderia ser menosprezada por um grupo que vive sob o terror e ameaça contra
suas vidas, seu status social e vê como iminente o desaparecimento de seu grupo
social e de seu modo de viver. Mas esse evento não mereceu destaque nas
manchetes dos jornais. O Natal dos Tenharim e sua experiência de comemoração do
Ano Novo Cristão será marcada, doravante, pela festa macabra dos representantes
da Ku Klux Kan no Brasil e por nossa indiferença face às manifestações de
racismo que invadem este espaço virtual, onde a intolerância está ganhando
terreno, em associação com a barbárie e a falta de educação.